As conclusões do Manuel - ou a arte de encontrar tomates e um par de botas
- PJ Vulter
- 9 de fev. de 2018
- 4 min de leitura

O Manuel…
Lembram-se do Manuel?
Aquele meu amigo que me tinha procurado no último dia do ano… O que tinha sido despromovido pela necessidade de reestruturação da empresa onde trabalhava...
Sim. Esse…
Encontrei-o, por acaso, no mercado, no outro sábado, no meio daquela gente toda, entre vendedores e clientes, entre pregões; lá estava ele a tomar o peso a uns tomates.
Toquei-lhe no ombro e ele abriu muito os olhos, de admiração, antes de me estender a mão que apertei satisfeito; era sempre bom ver o Manuel.
- Então, como vão as coisas? – perguntei-lhe, eu.
- Na mesma – disse, ele, num suspiro, voltando aos tomates. – Ou melhor; vão de mal da pior!
- Então, homem?!
O Manuel lá aviou um quilito de tomates - bem vermelhinhos - e encaminhámo-nos para outro lado qualquer. Eu não tinha um destino em particular, porque ia ao mercado só por ir – para ver as pessoas – e por isso resolvi acompanhá-lo; era evidente que ele continuava desanimado.
Talvez remoendo algumas coisas para si, o Manuel acabou por me contar que havia tido uma sessão de prémios, lá na empresa. Isso não era novidade para ele; a empresa tinha esse hábito…
- Alguma vez ganhaste algum? – quis, eu, saber.
- Não. Também não tinha nenhum motivo para achar que o merecia… Mas não é isso que está em causa! – Fez-me ver, um tanto irritado. – O que interessa é a forma como estas coisas acontecem…
Não o estava a perceber e disse-lho.
E ele lá explicou, mais uma vez remoendo, que já vira muita gente ser premiada por coisas que ele, um dia, também já havia feito, sem que isso, na altura, tivesse parecido a quem de direito ser digno de premiação.
- Parece que, quando sou eu que faço as coisas, apenas cumpro com a minha obrigação; e que, quando são os outros, são coisas do arco-da-velha… - dizia-me, ele, de cabeça baixa. – Há anos que isto é assim! Eu tenho passado a minha vida a simplificar as tarefas da minha equipa e a contribuir com isso para a empresa; desenvolvi documentação que permitiu a criação de outros documentos… Há coisas que ainda hoje, dez anos depois, são utilizadas! Mas nada disso interessa; o que interessa é que de repente há um tipo que dá um peido cor-de-rosa: é esse quem recebe o prémio… - Riu e abanou a cabeça. – Desculpa lá a linguagem, mas isto é difícil de entender.
- Não é – discordei, sem erguer sequer a voz. - Na verdade, talvez as pessoas que na altura decidissem fossem diferentes…
- São os mesmos! – cortou, sem agravo. – As pessoas que decidem estas coisas são basicamente as mesmas; desde sempre. E quem vem de novo... – Encolheu os ombros - Bom; esse limitam-se a repetir a cartilha…
- Então é o mundo que está contra ti?! – provoquei; fui mauzinho, mas só porque o Manuel tinha de pôr tudo cá para fora.
- Não. Não é o mundo! É só a gente naquela empresa que não me dá o devido valor… Sabes quem é que ganhou prémios?! – perguntou-me, como se mudasse de assunto. E eu acenei que não. – Entre outros, o meu novo chefe e um ratito que por lá anda aos caídos; daqueles que vão meter tudo no cu do chefe. E se me perguntares porquê, terei de te dizer que foi porque sim. Arranjaram uma razão pomposa e legítima; uma delas até foram buscar ao passado… - Sorriu, enquanto o seu olhar buscava qualquer coisa numa bancada de sapatos. – Tiveram de dar os prémios a quem mais gostam!
- Achas que é mesmo assim?
- Não tenho dúvidas! Não digo que na maior parte dos casos as pessoas não os mereçam; mas se tiverem de escolher entre duas pessoas, será sempre a favorita dos chefes quem ganha. – Pegou numas botas de cano alto e perguntou o preço. – E é normal! – surpreendeu-me, depois de ouvir o preço e franzir o sobrolho ao vendedor. – São pessoas; imperfeitas, como eu!
Aquilo espantou-me - mesmo. Por que motivo estava ele tão ofendido, então?
- Houve alturas em que eu achava que eles não gozavam comigo; eu é que achava que sim – continuou, voltando a questionar o preço de outras botas; ouviu outro preço e fez outro franzir de sobrolho. – Mas agora tenho de concluir que gozam mesmo: despromovem-me e ainda premeiam o meu novo chefe?!
- São pessoas imperfeitas… - disse, eu.
- São.
O Manuel pegou no primeiro par de botas que vira, eram pretas – tipo cowboy -, e ofereceu um valor ao vendedor; foi a vez do outro franzir o sobrolho, mas fecharam negócio.
- Se aceitas a imperfeição deles, porque te irritas, Manuel?
- Porque eu, sabendo que não sou perfeito, não ando a tentar enfiar na cabeça dos outros que o sou.
- E eles andam?!
O Manuel não respondeu. Fez antes um esgar de quem conteve uma resposta imediata, apenas para ponderar numa melhor. E foi já quando nos encaminhávamos para a saída do mercado, estacando a passada, que ele resolveu satisfazer-me a curiosidade:
- Desde sempre que há uma coisa que me irrita por lá. É aquela jactância: somos os melhores; não há melhor que nós; fazemos isto e aquilo… Mas tu sabes como é! Eu contei-te muitas coisas… - Era verdade; e por isso assenti ao que ouvia. - E, percebo agora, depois deste tempo todo, que o que temos ali, não é uma empresa de topo, como nos querem fazer crer; mas um cagalhão dourado! – E desenhou-o no ar; numa longa pausa. - E há outra coisa ainda que eu percebi; é que eu nunca fiz parte daquilo…
O Manuel despediu-se de mim com um sorriso nos lábios; e isso – conseguir ainda sorrir, com tanta coisa que o irritava – era o quem mais me impressionava nele. Havia, com certeza, uma espécie de resiliência que cultivara ao longo da vida e que lhe dava para o jogo de cintura que lhe ia permitindo esquivar-se, com mais ou menos danos, aos golpes da vida; era o que eu achava sobre aquilo.
E, enquanto o via ir, com um saco de tomates na mão e um par de botas na outra, questionava-me sobre o que pretenderia ele fazer quanto a tudo aquilo. Era por demais evidente que estava demasiado cansado… Mas se, por vezes, achava que o Manuel poderia já não aguentar mais, outras vezes havia, principalmente quando me brindava com aquele sorriso de «Está tudo bem!», em que eu tinha dúvidas quanto isso…
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