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«Marta», Capitulo I

  • PJ Vulter
  • 21 de mar. de 2018
  • 6 min de leitura

As ruas já estavam todas enfeitadas com as luzes e as decorações que se cruzavam umas sobre as outras, por cima das cabeças de quem estava na praça principal, penduradas nas varandinhas, nos candeeiros, e nos postes dos telefones. As pessoas passeavam apanhando a brisa fresca do mar que balançava as embarcações amarradas no cais, obrigando-as a ranger sobre a tensão das cordas que as seguravam.

Maria Alva descera do táxi em plena praça central. Atraíra logo as atenções dos que se quedavam nas mesas das esplanadas, entre uma imperial e outra, ao deixar-se ficar parada com as suas calças de ganga apertadas, decote ousado, lábios pintados de vermelho quente e o negro cabelo caído até aos ombros. Olhou em volta à procura de um rosto conhecido, até que o encontrou descendo a íngreme ladeira, com a sua sotaina solta ao vento, de mãos cruzadas atrás das costas.

«O estafermo do padre está velho!», pensou Maria.

Ainda se lembrava dele com o cabelo bem escuro e a pele bem esticada. Na altura era bem-parecido, hoje... Também não se poderia dizer que era feio.

– Padre António! – bradou Maria, aproximando-se apressadamente. – A sua bênção...

– Deus te abençoe, Maria... – declarou numa voz cansada e rotineira. – Desde quando me pedes a bênção, Maria Alva? – questionou, recomposto da surpresa e depondo o olhar no seu decote vermelho. – Vieste para as festas?

Maria sorriu-lhe, confirmando o motivo da sua vinda, e rindo-se ao constatar que o padre António continuava o mesmo, apesar de velho, e gostava de dar uma vista de olhos pelas meninas. Provavelmente era isso que o fazia sair da sua sacristia numa noite de festa.

– Viu a Teresa, padre?

– Não. Mas vi o Rodrigo... – declara, indicando com um meneio de cabeça para a entrada da praça. – O facto de os pais não se darem não significa que os filhos lhes tenham de seguir os passos... – diz, depois de ver o esgar de desagrado no rosto de Maria.

– Não é isso, padre... –Baixou o olhar, pouco à vontade. – Obrigado, padre. Acho que vou até à casa...

Maria disse boa noite e afastou-se.

– Folgo em ver que estás bem – disse-lhe ainda o padre enquanto a via ir embora.

Maria sorriu-lhe em resposta, traduzindo o que ele realmente queria dizer: folgo em ver que estás bem jeitosa. Estafermo. A idade não lhe trouxera sabedoria...

Teresa estava à janela quando Maria se acercou da portada, e desceu as escadas às catadupas, tal e qual uma criança, para lhe abrir a porta e abraçá-la com força.

– Que bom que vieste! – disse, Teresa, puxando-a para dentro. – Ficas connosco, não ficas?

– Não sei, Teresinha... – respondeu-lhe, sorrindo. – Se os teus pais não se importarem...

– É claro que não! És tonta?!

Maria não estava tão certa disso. Desde a morte da avó Graciete que a sua relação com os tios não era a mesma, e depois da morte dos pais parecera-lhe que piorara. Sentia um constante desconforto quando estava por perto deles, e embora ela soubesse muito bem porquê, não imaginava a razão por que a tratavam assim. A seu ver, eles não tinham qualquer motivo para isso, mas sabia que todos desconfiavam daquela última conversa que tivera com a D. Graciete Alva, sua avó, no seu leito de morte. E compreendia que, mediante essa terrível suspeita, não seria fácil para os tios encararem-na. Todavia, Teresinha ignorava tudo aquilo, ou parecia ignorar, e estava longe de o conceber. Ainda bem para ela.

– Ora se não é a minha netinha mais velha... – festejou o avô Antunes, irrompendo no hall vindo da sala. – Como tens passado? – Abraçou-a.

– Bem, meu avô! – exclamou respeitosamente, lembrando que a casa dos Alva era primeiro dele, e depois dos tios; e que, enquanto ele fosse vivo, sempre teria ali lugar; depois, só deus saberia. – Com saudades da sua boa disposição!

– Podias vir mais vezes... – retruque, encaminhando-a para a sala. – Não te preocupes, os teus tios foram dar uma volta... – segredou-lhe. – Já jantaste? – Maria acenou negativamente. – Vou já tratar disso...

Teresa deixou o avô sair da sala, sentou-se no sofá verde ao lado de Maria e, enquanto a olhava, deixou escapar uma lágrima.

– Olha lá... – disse Maria, bem-disposta. – Estás a chorar porquê?

– Tinha medo que não viesses... – respondeu, depondo a cabeça no ombro da prima. – Tinha muito medo que não viesses. Que também tu me abandonasses...

– Que também eu te abandonasse?! – questiona, séria. – Mau, mau, mau! – Sorri. – Que história é essa?

– Disparates!

Maria Alva deixou-se ficar a olhar os olhos azuis marejados de lágrimas. Um olhar tão parecido com o de Marta... Isso assustava-a. Ficava com medo de que tivesse o mesmo fim da irmã. Lembrava-se de um dia Marta a ter procurado com aquele olhar. Um olhar ferido, repleto de incompreensão e desespero…

– Vamos sair, Teresinha – afirma, levantando-se decidida. – Vai dizer ao avô que eu prefiro ir petiscar lá fora...

– Não vou nada! – recusa-se. – O avô vai logo dar-nos o sermão de que isso não é para mulheres! – Sorri. – Além disso, deves estar cansada!

Teresa levantou-se, pegou na maleta que a prima trazia e encaminhou-se para a escada.

– Não te preocupes, Maria Alva! – descansou-a sorrindo. – Não é nada sério... Amanhã conversamos.

O avô chamou dos lados da cozinha. Maria calculava que o jantar deveria estar servido. Deixou Teresa subir para os quartos, com ar de cachorro abandonado, e foi ter com o avô.

Pobre miúda. Deveria sentir-se a enlouquecer ali naquela pasmaceira, sem ninguém com quem conversar senão uma cambada de velhos senis e um padre tarado. Se ao menos lhe permitissem falar com os pescadores... Mas isso não lhe seria possível, com certeza.

«Deveria ser só isso!», tentou convencer-se, entre uma garfada e outra, depois de o avô se ter despedido para se retirar.

– A menina deve estar cansada... – disse a empregada velhota que já conhecia há tanto tempo, como a si própria. – As viagens de comboio são muito maçadoras.

– São longas, Carminda! – Retribuiu-lhe o sorriso, pensando que talvez ela soubesse alguma coisa de Teresa. – Está tudo bem por cá?

– Na paz de Deus, menina! – respondeu-lhe de mãos postas. – O menino Rodrigo também deve ter chegado hoje... Viu-o?

Maria olhou-a de soslaio. Porque é que insistiam em lembrar-lhe a existência daquele infeliz e tudo o que ele significava?

– Não sei! – ripostou quase indelicadamente.

– Se calhar o Sr. Afonso mandou-o buscar a Lisboa... – disse, pondo mais algum pão na mesa. – Ouvi dizer que eles têm carro...

Maria engoliu em seco e suspirou, irritada. Mas controlou-se, porque Carminda não queria ofendê-la, e provavelmente desconhecia o que ela sentia pelo Rodrigo. Para a Carminda, o menino Rodrigo era o menino Rodrigo, apenas.

Aquele infeliz apanhara o mesmo comboio que ela. Tentara ser cordial a viagem inteira e, quando o motorista dos Albuquerque o fora buscar à estação, oferecera-lhe boleia. Mas não queria nada daquela gente. E quanto a Rodrigo: não se sentia à vontade ao pé dele...

– Estava muito bom, Carminda – agradeceu, levantando-se. – Mas não posso comer mais; ainda quero tomar um duche e depois vou deitar-me!

– A menina vai desculpar-me... – disse Carminda, interrompendo-lhe o caminho. – A menina só trouxe roupa assim? – perguntou, baixando os olhos. – Eu sei que não tenho nada que ver com isso, mas os seus tios...

– Não se preocupe, Carminda... – descansou num sorriso. – Com os meus tios entendo-me eu!

Aquelas roupas usavam-se em Lisboa. Sabia que, em Peixelim, as normas da decência desaconselhavam o seu uso – só as mulheres que não se davam ao respeito as vestiriam; por isso trouxera roupas apropriadas para a ocasião. Imaginava que aquela semana já seria difícil assim por assim, e não tinha intenções de complicar mais a sua vida com constantes reparos à sua forma de vestir.

Maria Alva entrou no quarto. A mala já estava desfeita, a cama meio aberta... Visão dos deuses. Como estava cansada!

Depois de tomar o duche frio e vestir roupa lavada, cobriu-se com um roupão e foi até ao quarto de Teresa, espreitá-la.

Teresa dormia. Destapada, com os olhos cerrados, meio cobertos pela cabeleira ruiva e o rosto levemente sardento, sereno, descansava. Que sonhos teria?

Concluiu que poderia ir dormir tranquila. Talvez se tivesse inquietado por nada, talvez fossem só saudades, a emoção de a ter revisto. Quem dormia assim não poderia ter grandes problemas...

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