E Tudo o Bento Levou
- PJ Vulter
- 4 de mai. de 2018
- 5 min de leitura

O Bento era um tipo forte. Era aquele tipo de homem-armário: grande, imponente, inderrotável; uma locomotiva a correr e uma montanha parado. Mas era uma pessoa sensível…
Era frequente encontrá-lo triste, sentado na mesa do café, tombando imperiais – umas atrás das outras – e fumando cigarros seguidos, como de deles proviesse o próprio oxigénio. Depois levantava-se, pouco antes do noticiário das vinte, e deixava a mesa, repleta de copos vazios e com as beatas empilhadas no cinzeiro, e ia andando, devagar, equilibrando o peso de um pé para o outro, até deixar o café e desaparecer para dentro da rua.
Toda a gente gostava do Bento. No entanto, o Bento era uma pessoa assustadora para quem não o conhecia. Tinha o cenho franzido, como se estivesse sempre a duvidar do que via e ouvia, e a sua voz sonante - quando falava era para toda a gente ouvir – poderia ser confundida com os rasgos de uma zanga. Mas depois de se conhecer, o Bento, era uma criatura afável; ainda que abrutalhada nos modos e na educação.
Mas de onde era o Bento?
O Bento era conhecido no café Tric Trac...
O Tric Trac era o típico café de bairro, com os tradicionais «biquistas», da hora do almoço e do jantar, os «imperialistas», que passavam grande parte do tempo - da manhã ou da tarde - de volta dos copos príncipe e a petiscar o tremoço ou o amendoim, e os «tinteiros», mais centrados nos fins tardes e sempre acompanhados de uns pezinhos de coentrada; também haviam os «branquelas», mas esses eram mais raros.
Contaram-me que aquela era a forma bem-disposta como o Bento descrevia o ambiente do Tric Trac. Todavia – garantiram-me -, apesar daquelas nomenclaturas um pouco sarcásticas, desengane-se quem pensar que havia, por ali, quizilas; toda a gente que conhecia o Bento o estimava, respeitava e gostava de falar com ele. E fossem «tinteiros», «biquistas», «imperialistas», ou até os «branquelas», todos apreciavam a boa disposição do Bento e todos se sentavam à mesma mesa em amena cavaqueira… No entanto, ninguém sabia de onde vinha o Bento; nem para onde ia.
O Bento era uma figura popular; mas no Tric Trac…
E foi por isso que naquele fim de tarde, quando o Bento cambaleou para a rua, ninguém soube para onde ele foi; ninguém sabia de onde ele era, nem para onde, ele, normalmente ia.
Também ninguém se preocupou com isso, pois, como disse, não eram estranhos aqueles assomos de sofrimento no Bento. E, não sendo comuns, ou rotineiros, eram momentos que tinha e ia tendo; todos lhos conheciam e, por respeito e estima, nesses dias, limitavam-se aos «Bons dias» e «Boas tardes» - por altura das «Boas noites», já o Bento, regra geral, desaparecera pela rua. Comentava-se – é claro -, e à boca pequena, sobre o que traria ao Bento tamanha tristeza, mas eram conversas em surdina e prontamente terminadas - como se de um tabu se tratasse - com o reconhecimento do direito do «homem» ter dias maus; certos – todos, sem excepção – de que o Bento que todos conheciam estaria de volta na manhã seguinte, como era habitual.
Mas naquela manhã seguinte o Bento não apareceu. Passou-se a tarde; e nada do Bento dar ares de sua graça. E, já perto do noticiário das vinte, ainda sem notícias do Bento, quem ainda o vira no dia anterior, permanecia - e em silêncio - onde estava, encostado ao balcão ou numa das mesas, com o que quer que fosse o seu veneno esmorecendo-lhe nas mãos, e de olhos fitos na mesa que ele ocupara; e, era certo - para aqueles -, aquilo fora tema de conversa à mesa, em casa, enquanto se jantava.
Nos dias seguintes, organizaram-se buscas. Todos os clientes do Tric Trac percorreram o bairro à procura do Bento. Diziam - ou tentavam dizer - às pessoas quem era o Bento: um homem grande como um móvel de sala, de má cara e vozeirão, mas muito simpático e boa pessoa. Mas ninguém o conhecia; e não foi preciso muito tempo para perceberem que talvez ninguém mais o conhecesse se não os «biquistas», os «tinteiros», os «imperialistas» e os «branquelas».
«Talvez o Bento nem fosse do bairro…», pensaram alguns.
«Para onde teria ido o Bento?», perguntavam-se outros.
«Mas como poderemos sabê-lo, se nunca lho perguntámos?», constatavam quase todos.
O Bento nunca mais voltou ao Tric Trac. E nunca ninguém soube o que lhe aconteceu; ao certo. Tornou-se uma lenda, um mito, com direito a uma mesa intocável no meio do Tric Trac: a Mesa do Bento.
E o Tric Trac fechou. Mais ou menos um ano depois, foi trespassado para um jovem casal que, ao tomar conhecimento da história, por muito sórdida que a achasse, quis manter a Mesa do Bento; e assim o fez.
Mas os novos donos do Tric Trac não se ficaram por aqui; o Tric Trac transformar-se-ia em «O sítio do Bento». O casal disse que o fizera por não se poder passar ao lado de tudo o que aquela história poderia significar; mas houve quem achasse também que, possivelmente, o casal – com olho para o negócio - tentara cativar alguma da clientela do Tric Trac. Contudo, se fora esse o intuito, tal não resultou; não porque fosse mal pensado, mas porque já não havia clientes do Tric Trac.
Naquele ano que mediara o trespasse, as pessoas foram deixando de aparecer no Tric Trac; diziam que sem o Bento aquilo não era a mesma coisa. E havia mesmo quem dissesse que sentia uma coisa estranha a pairar por ali…
O dono do Tric Trac, o senhor Mendes, durante largos meses, ignorou o que diziam; apesar de até ele sentir uns calafrios e arrepios de vez em quando. Para ele, aquilo não passavam de remorsos pelo que acontecera: afinal, uma pessoa importante para todos, popular, conseguira ainda assim ser ignorada ao ponto de nada se saber dela. Como é que tal havia sido possível, não sabia. Mas a verdade é que o Bento estivera lá para todos, mas nunca ninguém estivera para ele; aos seus maus dias, todos respondiam com «Bons dias» e «Boas tardes» - só - e nunca ninguém quisera saber mais… No entanto, uma noite, perto do noticiário das vinte, quando – jura a pés juntos – viu o Bento, sentado na Mesa do Bento, a empilhar beatas no cinzeiro como se de uma pilha funerária se tratasse, deixou de lutar contra aquela ideia da assombração; desligou o quadro eléctrico, foi para casa e fez o que toda a gente fazia desde que o Bento desaparecera: desapareceu também.
E o Bento?
O Bento, aquele homem grande, imponente, simpático e afável que desapareceu sem deixar rasto algum, para além nada ter deixado senão vazio, aparentemente, e também, tudo o resto levou.
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