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O Silêncio dos Inocentes



No café onde costumo escrever - pelas manhãs - há uma mesa, junto à janela, que está adornada com manjericos de plástico. Toda a gente que lá se senta pela primeira vez - é certo e sabido - vai mandar com um dos manjericos ao chão; a mim já me aconteceu. No entanto, os manjericos lá continuam…


Naquela manhã, sentada nessa mesa, estava uma família de turistas: pai, mãe e uma pequenita. E, para azar da pequenita, sentaram-na mesmo ao lado dos manjericos...


Estava tudo a correr muito bem, tomavam o pequeno almoço em paz, até que um dos manjericos caiu ao chão. Terá a pequenita feito alguma coisa?


Não! Basta ter-lhe tocado; e de passagem. Mas os pais deram-lhe um raspanete que a puseram a chorar. E eu, ao ver aquilo, pensei: quantas vezes mais será aquela criança repreendida indevidamente, sem compreender o que fez?


Na verdade, dei por mim a pensar em tudo aquilo que fazemos às crianças – e supostamente por bem – que elas não entendem; e a questionar-me por que achamos que tem de ser assim.


Jesus Cristo disse – e não faço tensões de citar – que deveríamos ser como as crianças porque é delas a porta do céu. O que quereria ele dizer?


As interpretações são muitas, mas a mundo centrou-se em torno da interpretação que a igreja fez: a inocência e pureza das crianças.


E não é mentira nenhuma. De facto, não há nada mais inocente e puro do que os pequenitos; mas até dado momento: a partir de certa altura, muitas crianças tornam-se cruéis e manipuladoras… Mas não é disso que quero falar; para já.


A inocência e pureza das crianças tem uma causa e uma razão de ser. Mas a Igreja não se ateve nisso; simplesmente o disse, o aceitou e o tornou uma verdade universal. No fundo, vê esta inocência como uma regra, uma coisa que tem de ser e que todos temos de aceitar como um axioma.


No entanto, não é só isso que se passa…


Conhecem Osho?


Já leram a teoria do Bon Sauvage?


Posso também usar algumas referências mais populares: «O Exorcista”; “Poltergeist”; “A Profecia”; “Colheita maldita”…


De repente, nada parece ter que ver com nada. Permitam-me que explique; tentarei ser sucinto.


Osho considera que as crianças são inteligência pura, e bruta, enquanto longe dos instrumentos que a sociedade criou para as controlar. No seu entender, todas as crianças, deixadas livres, saberiam como fazer as melhores escolhas para si próprias, pois escolheriam mediante a sua própria lógica e não mediante a lógica que lhes seria ensinada pelos pais, pelos educadores, enfim: pelos instrumentos que a sociedade criou para os coartar da liberdade que a inteligência pura que trazem lhes permitiria. Pode ser um tanto polémica, esta perspectiva, mas leiam os livros dele; nomeadamente «Inteligência» - não é muito grande – e conseguirão ver uma lógica assustadora.


A teoria do Bon Sauvage, de Rosseau… Bom; na verdade, o termo Bon Sauvage não foi cunhado por Rosseau, mas o que ele diz resume – e muito bem – o conteúdo da sua teoria: « l’homme naît bon, c’est la société qui le corrompt». E, com base nisto, poderemos facilmente deduzir que também Rousseau considerava que a criança é inocente, pura e boa; não se alargando, contudo, nos motivos porque assim é… Toda a sua teoria assenta em factores externos à nossa vontade, nos mecanismos sociais tácitos, e não tácitos, que operam invisivelmente e transformam - corrompem - o Homem na sua inocência; mas também ele não se aventura em explicar por que é a criança inocente.


Quanto às referências populares, todas elas têm como eixo comum a existência de uma criança que inadvertidamente entra em contacto com o Mal… Porquê o Mal?


Isso explica-se, numa primeira instância, pelo efeito dramático: o Mal no corpo de uma criança que, por definição, é pura e inocente. Mas eu acredito que reflita também um dos nossos maiores medos enquanto espécie que sabe e esqueceu que há coisas superiores a si própria: a possibilidade de o Mal encontrar o caminho para o nosso mundo através do melhor portal que existe (as crianças).


E é aqui que está a questão central. A criança não é inocente e pura; a inocência e a pureza são conceitos humanos. A criança chega a este mundo com uma clarividência natural, a tal inteligência de que Osho fala, e com a bondade de Rousseau, e habitua-se a seguir a sua intuição para se ir movendo pelo mundo. Ela sabe o que é melhor para si própria…


É também, no entanto – e por aquilo mesmo -, uma vítima fácil para as forças negativas deste mundo e é por isso que tem de ser ensinada, vigiada e educada. Contudo, aquilo que nós fazemos, vai muito para além disso: nós manipulamos as crianças, enchemos-lhes as cabeças de regras, impedimo-las de seguirem a sua intuição – até porque isso, nos padrões ditos científicos, nem existe – e construímos cópias de nós próprios. E é precisamente quando começamos a fazer isso que a criança se torna manipuladora e cruel; é um reflexo imediato do nosso processo de condicionamento. Porquê?


Pois se não pode seguir aquilo que acha que deve ser, se tem de seguir um caminho cuja lógica não entende, tenderá a tentar com que isso lhe seja o mais fácil possível e responde na mesma moeda; aquilo que nós lhes fazemos é cruel e manipulador.


Perante tudo isto, e aquilo que hoje vi, eu pergunto: o que estaremos realmente a fazer às crianças e – por consequência – ao futuro da humanidade?

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