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Os Dilemas do Manuel


Os Dilemas do Manuel, PJ Vulter

O Manuel andou ao largo por uns meses valentes. Não sei o que andou a fazer, mas lá tornou a aparecer… E é curioso que o tenha feito com o ano a acabar, como fez no passado. Na minha opinião, o Manuel tenta levar as coisas com o seu bom feitio, mas acaba sempre por se sentir ultrapassado pelos eventos; ainda que não inteiramente, porque o que se passa – regra geral –é que tem a esperança de estar enganado… Mas não está; e quando o constata…


E foi assim que ele reapareceu à minha porta - dois dias antes do fim de ano; com cara de quem tinha consciência de que tinha falado demais e que o seu comportamento tinha estado longe daquilo que a sua atitude prometia. Eu não julgo ninguém, e muito menos o Manuel – a quem estimo verdadeiramente -, e nem fui eu quem pensou isto; foi ele quem mo disse.


Contou-me, ele, já sentado no sofá e com um café nas mãos, que tentara levar a vida para onde queria, mas que a vida não lhe fizera a vontade. “A vida é um gigante e eu não passo de uma formiga! Como poderia querer forçá-la a mudar de direção?!”


Na verdade, Manuel quisera sair do sistema; quisera transformar a sua vida naquilo que ele entendia ser o melhor para si. E, quando recordo - agora - as palavras que me dissera há quase um ano, revejo nelas isso mesmo e compreendo – finalmente – aquilo que então me escapara.


“No entanto, há coisas sem as quais não posso viver; não consigo viver sossegado sem ter uma fonte certa de rendimento, por exemplo. E se ao menos tivesse essa fonte certa de rendimento, garantida de outra forma, poderia dedicar-me àquilo que sinto ser o meu caminho…” disse, ele, muito triste, esmorecido e com o olhar perdido no café. “Percebes o que quero dizer?”


“Percebo…” respondi-lhe. “Queres aquilo que não tens! Queres ter uma vida que não é a tua! E, para isso, queres ser alguém que não és…”


O Manuel levantou, então, o olhar da chávena e estava vidrado. Talvez não esperasse ouvir aquilo e era possível que tivesse ido ali em busca de ânimo; mas eu – como amigo que sou – não podia passar-lhe a mão pelo pêlo e permitir que ele continuasse a trilhar um caminho que não teria sucesso.


Esperei pela sua reacção; julguei que me fosse atacar de alguma maneira, dizer-me que eu não o entendia, mas não lhe vi nenhuma raiva nem intenções de contradizer-me. Pelo contrário, voltou a baixar os olhos e tornou a olhar o café. Todavia, eu, não podia esquecer o que vira naquele olhar: o desespero de quem sabe o que quer e o que não quer, mas não entende o caminho.


“Mas não desistas, Manuel!” resolvi dizer-lhe. “Se estás certo do que queres para ti, não desistas!”


O Manuel assentiu, pouco convicto, e levantou de novo o olhar na minha direção; e, de caminho, uma lágrima caiu-lhe e perdeu-se no café.


“Desculpa…” pediu, embaraçado. “Mas não sei o que fazer. Simplesmente não sei!” Sorriu, meio perdido. “Dizes-me para não desistir… E resumiste, e muito bem, aquilo que eu quero; terás razão. No entanto, eu acho – face a tudo aquilo que tenho feito e passado – que já mereço isso!”


“Oh… O merecimento!” Sorri, depondo a minha chávena de café - já vazia. “E o que é isso; o merecimento? Quem é que define quando alguém merece alguma coisa? E será que só merecemos coisas boas? E as coisas más; quem as merece e porque fazem parte da nossa vida?!” Abanei a cabeça ao ver o rosto mais sereno do Manuel. O Manuel era um tipo inteligente e entendia a onde que pretendia chegar. “Fala-se do merecimento sempre na perspectiva positiva; como se fosse um prémio… Quando alguém diz que acha que merece – como tu – di-lo sempre de uma forma que nos faz pressupor que é uma premiação! No entanto, não dizes que mereces isto que tens, pois não?!”


“Eu tenho-me esforçado, caramba!” disse, num principio de revolta. “Tu sabes bem disso… Tu conheces-me desde miúdo. Tens acompanhado a minha odisseia!”


“Não é isso que está em causa, Manuel! Toda a gente acha que merece algo que não tem… Mas numa corrida tanto merece o 1º lugar quem a vence como, quem chegou no fim, merece o último. Porquê? Porque o primeiro treinou e preparou-se; e o último fez também isso… Mas isso só significa que houve esforço de ambos; e talvez o último até se tenha esforçado mais. No entanto, o primeiro chegou ao fim em primeiro e o segundo em segundo e o terceiro em terceiro…


“E o último em último!” Interrompeu-me.


“E o último em último…” continuei. “Todos eles, sem excepção, acham que mereciam chegar em primeiro; todos eles entendem que se esforçaram mais do que os outros e que por isso – só por isso – mereciam ganhar a corrida. Todavia, o nível de esforço que cada um teve só cada um deles pode aferir – não é comparável – e não é só o esforço que define quem vence, porque há outras variáveis mais importantes; e eles sabem-no. E é por isso que não contestam os resultados, porque eles são irrefutáveis. E em vez de falarem de merecimento falam de justiça; não acham justo. Mas a diferença está só na palavra…” O Manuel levou o café à boca pela primeira vez, mas fez uma careta e deixou-o de lado; talvez pelo salgado da lágrima. “A questão é que tendemos a achar que o merecimento vem em função do esforço e esquecemo-nos que quando nos esforçamos muito para conseguir uma coisa é porque essa coisa nos é difícil; e quanto mais difícil nos é conseguir algo é porque menos apetrechados estamos para tê-lo. E, quando assim é, aquele não é o nosso caminho…”


“Resumindo: achas que aquilo que eu quero para mim não me está destinado…”


“Tens dificuldades sobre-humanas em fazeres aquilo que achas que tens de fazer?”


“Então não vês?!”


“Não; não vejo! O que eu vejo é que queres muito que algumas coisas sucedam e isso é que está a ser difícil… Mas eu vejo o teu trabalho; eu sigo as coisas que fazes, aquilo que tu és e a tua expressão no mundo…” Sorri-lhe. “Tens melhorado muito e não sinto que aquilo te seja tremendamente difícil.”


“Não é!” admitiu.


“Pois, então…” Levantei-me, preparei-lhe outro café e dei-lho. “Não estás no caminho errado, no sentido do talento e do que tens de fazer neste mundo; mas estás a querer que as coisas sejam de uma determinada maneira, que o exterior se coadune com aquilo que tu achas que seria o ideal…” O Manuel lá assentiu; um pouco contrariado, mas parecia entender. “Por isso é que te esforças tanto e não tens o que procuras e achas que merecias. No entanto, se não o consegues é porque não é esse o teu caminho; é porque, para lá chegares, tens de ir, mesmo, pelo caminho que hoje percorres…”


“Mas é tão difícil!”


“Se fosse fácil, não era o teu caminho…” O Manuel ia protestar; mas não deixei. “Não estou a dizer que tens de sofrer… O que quero que entendas é que o teu caminho promove o teu desenvolvimento, as competências que tens de desenvolver neste mundo; os teus desafios… A tua vontade em que as coisas sejam diferentes, é a tua constatação de que aquele seria o mundo ideal para ti, mas o teu esforço inglório é a prova de que a forma para lá chegares não aquela que pensas que é…”


“E qual é?!” Provocou, depois de beber um gole de café. “Sinto que cada vez consigo fazer menos do que quero; quero fazer coisas à noite, quando estou em casa, mas sinto-me tão cansado que só me apetece ver televisão… Sobra-me o fim-de-semana, mas não posso passar o fim-de-semana agarrado às minhas coisas, porque também gosto de sair e de me divertir… É por isto! É por isto que eu acho que tenho de sair e quero tanto sair; mas não consigo…”


“Não consegues, porque tu não és esse tipo de pessoa, Manuel; e, se o fosses, sentirias outras dificuldades, noutros campos. Todos nós – sem exceção – vimos a este mundo para nos aperfeiçoarmos!” Sorri-lhe, voltando a sentar-me. “Einstein dizia que não podemos esperar obter resultados diferentes se fizermos tudo sempre da mesma maneira… Procura formas diferentes de fazer as coisas, mais ajustadas a ti, a quem tu és, às tuas necessidades e limitações; não há nenhum problema em termos limitações: fazem parte de nós e temos de as abraçar.”


Manuel voltou a beber da chávena; bebeu tudo e depô-la na mesa. “Mas isso implica que eu produza menos…”


“Será?!” Ri-me. “Sabes que as pessoas com mais sucesso são aqueles que menos se esforçam? No sentido do esforço inglório, claro está! Elas apostam nas coisas certas, porque conhecem-se e aceitam-se conforme são. A ideia de merecimento associado ao esforço, vem de uma sociedade que - à viva força - quer acreditar que somos todos iguais e todos podemos ser o que quisermos… Mas como assim não é, existe toda uma geração de frustrados que não entendem como é que se esforçam tanto e não conseguem o sucesso que outros, com metade do esforço, têm; e vivem revoltados e injustiçados com a vida.” O Manuel olhou-me confuso e meio perdido. “O que quero dizer-te é que talvez produzas menos em quantidade, mas talvez ganhes em qualidade e satisfação; porque estás no ritmo adequado para ti e tudo te será mais natural e fácil!”


O Manuel acabou por aceitar o que lhe dizia e prometeu-me que iria tentar.


Já com a porta aberta e com as costas voltadas para mim, disse-lhe ainda:


“E nos dias mais difíceis; não te martirizes achando que mereces mais porque te esforças tanto. Pensa, antes de tudo, que esforço e trabalho não são sinónimos; e que se sentes que te esforças demasiado é porque estás a derrapar. Os melhores caminhos são aqueles que se fazem trabalhando, mas sem sentirmos o peso dos passos que damos…”

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